FILOSOFIA PARA O ENEM E ENSINO MÉDIO
Não gosto de pensar a filosofia como um empreendimento interdisciplinar, pois isso me cheira a um positivismo démodé. Lembremos que Comte, não vendo a possibilidade de a filosofia produzir verdades positivas, uma vez que não opera pela experimentação, como as ciências, reservou a ela a função interdisciplinar de reunir os conhecimentos parciais produzidos por cada ciência em uma visão de conjunto, em uma cosmovisão. Mas, por outro lado, não consigo deixar de vê-la como empreendimento transversal, que atravessa outros campos de saberes, na mesma medida em que é atravessada por eles. Penso que hoje não se cria conceito, não se produz filosofia, sem uma conexão direta e transversal com as diversas artes e as distintas ciências. Embora elas sejam distintas entre si, elas se retroalimentam, se fecundam mutuamente. A filosofia é um empreendimento transversal.
A nova legislação educacional brasileira parece reconhecer, afinal, o próprio sentido histórico da atividade filosófica e, por esse motivo, enfatiza a competência da filosofia para promover, sistematicamente, condições indispensáveis para a formação de cidadania plena. Em que pese essa competência, entretanto, cumpre destacar que, embora imprescindíveis, os conhecimentos filosóficos não são suficientes para o alcance dessa finalidade. Aliás, constitui quase um truísmo pedagógico afirmar que todos os conhecimentos, disciplinas e componentes curriculares da educação básica são necessários e importantes na formação de cidadania do educando. Nesse sentido, embora restaurando para a filosofia o papel que lhe cabe no contexto educacional, a legislação tratou igualmente de indicar como se deve corretamente dimensioná-la no ensino médio: a rigor, portanto, o texto refere-se aos conhecimentos da filosofia que são necessários para o fim proposto. Destarte, a fim de atender à demanda legal, devemos fazer um esforço para recortar, do vasto universo dos conhecimentos filosóficos, aqueles que imediatamente precisam e podem ser trabalhados no ensino médio, o que, convenhamos, não é tarefa fácil. A formação da cidadania plena no ensino médio requer o desenvolvimento da competência da filosofia.
Sem dúvida, o terceiro milênio abriu com um deficit de horizonte ético. Nem por isso os homens podem deixar de sonhar com a liberdade, com o sentido e com a finalidade da vida justa, solidária, pacífica, ou seja, com a retomada das grandes referências éticas. Em outras palavras, o Homo faber não pode prevalecer sobre o Homo symbolicus. A questão do sentido ético da vida, da história, da ciência, está subjacente ao mundo definitivamente marcado pela tecnociência. Cabe à filosofia, à ética, à bioética criar uma hermenêutica para explicitar o sentido maior embutido na biotecnologia e na pluralidade das éticas particulares. A filosofia quer contribuir para que o Homo symbolicus prevaleça sobre o Homo faber.
As sete antinomias do ensino de filosofia de Derrida
I Protestar contra a submissão da filosofia a finalidades externas (útil, produtivo etc.). Não renunciar ao princípio de finalidade, que rege a missão da filosofia como instância final de juízo.
II Protestar contra o fechamento da filosofia no interior de uma definição disciplinar específica. Reivindicar a unidade e especificidade da filosofia.
III Pretender que a filosofia não seja nunca dissociada do ensino. Permitir-se pensar que algo essencial na filosofia não seja reduzível aos atos e às práticas do ensino.
IV Exigir que as instituições sustentem essa disciplina impossível e necessária. Postular que a filosofia exceda todas as instituições. V Solicitar, em nome da filosofia, a presença de um mestre, mesmo sabendo que a presença dele afeta a estrutura democrática da comunidade filosófica.
VI Saber que a filosofia como disciplina requer um ritmo calmo e um tempo diluído. Sua unidade e arquitetura testemunham uma contração instantânea.
VII Criar as condições para que alunos e professores disponham das condições de sua transmissão disciplinar (eterodidática). A filosofia não pode renunciar a seu itinerário auto didático e autônomo.
As antinomias indicadas por Derrida propõem que a filosofia como disciplina mantenha sua liberdade radical de propor sua própria metodologia de trabalho.
Na filosofia, a definição constitui o momento de fixação e de delimitação, pelo menos virtual, dos conceitos. Sua aparente simplicidade esconde, de fato, um conjunto de operações que é preciso esclarecer. Não existe definição filosófica independente da doutrina. Os estilos e a forma das definições platônicas não são os de Aristóteles, os conhecimentos relativos à uma doutrina filosófica é uma articulação de definições coerentes entre si.
A filosofia de Aristóteles pode parecer uma catedral abandonada, uma construção a ser visitada aos domingos, a respeito da qual se perguntaria, com certa curiosidade, que pessoas a teriam habitado. Um exame mais atento da filosofia do nosso século, porém, atesta o contrário: Aristóteles foi continuamente discutido, analisado, debatido, e isto nas mais diferentes correntes, em momentos decisivos de suas elaborações. Em particular, a ética aristotélica ocupa uma posição privilegiada nos atuais debates sobre a moral. A razão disso consiste muito provavelmente no fato de que a ética contemporânea buscou atenuar os elementos demasiadamente rígidos que herdou do que podemos considerar a ética por excelência da época moderna — o formalismo kantiano. As reflexões de Aristóteles sobre a ação, a moral e a razão prática foram corretamente vistas por um bom número de autores como podendo servir de contrapeso a esta herança. A ética contemporânea reconhece a necessidade de recorrer à ética de Aristóteles, pois seus conceitos parecem-lhe mais apropriados do que os da ética moderna.
As pessoas dizem repetidamente que a filosofia não progride realmente, que estamos ainda ocupados com os mesmos problemas filosóficos que os gregos. Mas as pessoas que dizem isto não entendem por que isto deve ser assim. Isto é porque nossa linguagem tem permanecido a mesma e permanece nos seduzindo a perguntar as mesmas questões. Enquanto continuar esta situação as pessoas permanecerão se deparando com as mesmas intrigantes dificuldades e encontrar-se-ão começando algo que nenhuma explicação parece capaz de esclarecer. Wittgenstein, e os conhecimentos relativos ao debate filosófico acerca da linguagem no século XX entende que a sedução da linguagem impede que a filosofia elabore novas questões.
Rousseau teve o mérito de afirmar que o princípio do Estado é a vontade. Mas, tendo entendido a vontade universal não como a racionalidade em si e para si da vontade, mas apenas como o elemento comum que deriva da vontade singular, Rousseau faz com que a associação dos indivíduos no Estado se torne um contrato, algo que, portanto, tem como base o arbítrio desses indivíduos, a opinião e o consenso explícito deles. Tendo como referência esse texto de Hegel e conhecimentos relativos ao debate filosófico sobre o Estado moderno, e segundo Hegel, a vontade geral, que fundamenta o Estado, tem uma base objetiva, ou seja, sofre um processo de determinações históricas que transcende a ação dos indivíduos e seus interesses singulares.
Nenhuma sociedade pode sobreviver sem um código moral fundado em valores compreendidos, aceitos e respeitados pela maioria dos seus membros. Nós não temos mais nada disto. As sociedades modernas poderiam dominar indefinidamente os poderes fantásticos que a ciência lhes deu com o critério de um vago humanismo colorido por uma espécie de hedonismo otimista e materialista? Poderiam, nessas bases, resolver suas intoleráveis tensões? Onde vão desmoronar? Morais humanistas e hedonistas não são suficientes para resolver os conflitos sociais que a ciência moderna gerará.
A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Estabelece modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis, as transformações permitidas por sua definição, só de longe em longe se confronta com o mundo real. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar tudo como “objeto geral”, isto é, ao mesmo tempo como se ele nada fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifícios. Mas a ciência clássica conservava o sentimento da opacidade do mundo, e é a este que ela entendia juntar-se por suas construções. A ciência moderna parte do pressuposto de que a realidade objetiva esteja disponível por meio da criação de artifícios que a generalizem.
Não acredito ser possível decidir, usando métodos de ciência empírica, questões controvertidas como a de saber se a ciência realmente usa ou não o princípio da indução. Minhas dúvidas aumentam quando me dou conta de que será sempre questão de decisão ou de convenção saber o que deve ser denominado ciência e quem deve ser chamado cientista e a definição do método científico é uma construção social, historicamente datada.
A redução do outro, a visão unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os grandes empecilhos da compreensão. Outro aspecto da incompreensão é a indiferença. E, por este lado, é interessante abordar o cinema, que os intelectuais tanto acusam de alienante. Na verdade, o cinema é uma arte que nos ensina a superar a indiferença, pois transforma em heróis os invisíveis sociais, ensinando-nos a vê-los por um outro prisma. Charlie Chaplin, por exemplo, sensibilizou plateias inteiras com o personagem do vagabundo. Outro exemplo é Coppola, que popularizou os chefes da Máfia com O Chefão. No teatro, temos a complexidade dos personagens de Shakspeare: reis, gângsteres, assassinos e ditadores. No cinema, como na filosofia de Heráclito: “Despertados, eles dormem”. Estamos adormecidos, apesar de despertos, pois, diante da realidade tão complexa, mal percebemos o que se passa ao nosso redor e para compreender a complexidade que rodeia os humanos, necessita-se despertar para ela.
Por causa de sua pobreza, imputada à inutilidade da filosofia, Tales era alvo de escárnio; graças, porém, a seus conhecimentos de astronomia, ele previu, ainda em pleno inverno, que haveria uma abundante colheita de azeitonas; ele obteve, então, algum dinheiro e adquiriu os direitos de uso de todos os lagares em Miletos e Quios, pagando pouco porque ninguém competia com ele; quando chegou a época da extração do azeite, houve uma súbita procura de numerosos lagares ao mesmo tempo, e sublocando-os nas condições que quis ele ganhou muito dinheiro, provando que para o filósofo é fácil obter lucro quando ele quer, mas não é disso que ele cuida pois a preocupação com a vida prática é um tópico importante da reflexão filosófica desde os tempos antigos.
Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar. Instruir (ensinar) pode, portanto, significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la, ou, inversamente, forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a reconhecer e a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o segundo, emancipação. Sócrates, que teria declarado “saber de nada saber”, é o modelo de filósofo dos tempos mais antigos.
Uma das figuras privilegiadas na adoção do poder pastoral pelo Estado moderno, nas instituições educacionais, é a figura do professor-pastor. Ele assume a responsabilidade pelas ações e pelo destino da turma e de cada um de seus integrantes. Ele se encarrega de cuidar do bem e do mal que possam acontecer dentro da sala de aula. Ele responde por todos os pecados que possam ser cometidos no seu espaço. Embora assuma modalidades leves e participativas, entre o professor e a turma há uma relação de submissão absoluta; sem o professor os alunos não saberiam o que fazer, como aprender, de qual maneira comportar-se. O professor ganhará a confiança de cada aluno para que ele lhe confie seus desejos, angústias e ilusões. Por último, lhe ensinará que sem alguma forma de sacrifício ou renúncia seria impossível desfrutar de uma vida feliz e de uma sociedade justa porque o poder pastoral é a forma de poder que irá estruturar as tecnologias, os dispositivos do Estado moderno.
No final de as Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, Marco Pólo e o Kublai Kan travam um diálogo sobre a cidade última, para onde todos os nossos caminhos nos levam. Kublai — É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga em um vórtice cada vez mais estreito. Responde Pólo — O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. A filosofia pode ser pensada como uma busca por distinguir, no meio do inferno, sinais de esperança.
A partir da metade dos anos 60 do século passado, no Brasil, a consciência de seu caráter de continente periférico, alheio às decisões mundiais, apêndice dos blocos de poder, substituiu a euforia desenvolvimentista. Sua marginalidade, agravada, a partir dos anos 80, pela recessão econômica, só parece compatível com as estritas análises político-econômicas (...). O tratamento filosófico das questões era confundido com o ecletismo e o antiexperimentalismo da época colonial, sendo então tomado como traço de letrados tradicionais e incapazes de contribuir para a solução prática dos problemas (...). Essa alergia à reflexão filosófica se mostra, na conjuntura atual, pela incapacidade de lidar com a interpretação da cultura senão como prolongamento da conjuntura político-econômica.
A cultura é interpretada, no Brasil, como prolongamento da conjuntura econômica.
Para que se possa falar realmente de história da filosofia, em sua completude, parece-me necessário estabelecer uma relação teorética, isto é, um diálogo com o clássico: pondo a ele perguntas (as nossas, as de sempre) e avaliando suas respostas às mesmas. Sem esta relação vital com o clássico a história da filosofia se torna passatempo de colecionador e o professor de filosofia, antiquário de loja de antiguidades. Especialmente para este diálogo torna-se necessária a superação de uma pretensa postura de neutralidade do historiador da filosofia (no nosso caso, do professor): será preciso declarar explicitamente sua postura filosófica para que essa mesma possa ser avaliada e colocada “na mesa”.
Para que uma história da filosofia se torne ensino de filosofia é necessária uma relação vital com o clássico.
Não se trata, portanto, de estudar a história da filosofia porque na sequência dos filósofos existe algo em si mesmo educativo. O valor educativo está em cada um dos grandes clássicos da filosofia, pois nele existe o tormento do pensamento. O que a história da filosofia ensina é a compreender o tormento, a inquietude por maior conhecimento e reflexão que moveu os filósofos desde a Antiguidade.
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